Memórias Caiçaras

NA

CASA de TAIPA

  Do mesmo autor de Depois do Exílio










      Luiz Dos Passos

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Ficha técnica

Direitos reservados a
Luiz dos Passos/LDP Notícias
CNPJ- 04.061.508/0001-50
Correspondência: Rua Ipanema, 45 casa A

Vila Adriana – CEP 11950-000 – Cajati/SP
Primeira edição 1993
Segunda edição 2008
ldpcajati@hotmail.com
Foto de Luis Marco
Foto de capa-Kelly Millena dos Passos
Criação LDP





Proibida a reprodução integral ou parcial sem autorização do autor

TEMPO DE DANTE


Estamos na era em que Paulo Coelho descobre a formula e vende milhões de livros e a geração se esquece de Machado de Assis, Monteiro Lobato entre outros que fogem da memória cultural do País, já não se fala mais em Tarsila do Amaral, Almeida Jr, Aleijadinho, Carlos Gomes, enfim, Mazzaropi, não tem mais lugar na tela, nem Oscarito, nem Arrelia, Grande Otelo já se Foi, Que sorte que temos Marcelo Rubens Paiva, Ubaldo Ribeiro, Manoel Carlos, Gloria Peres, Lucio Mauro, entre outros que estão e estão por nascer, uma época, que a luz elétrica se apaga e a lamparina ganha o lugar na estante. O homem se cansou da cidade e volta pro campo, e volta pro canto, e tenta reconquistar o linguajar as vestes e o cardápio, bem no pé do fogão a lenha da saudosa e agora real; Casa de Taipa. Esta obra de Luiz dos Passos é uma memória viva desse momento, numa linguagem simples e bucólica, repassa e rememoriza esse cenário passado a ferro    de brasa, lida em lampião de querosene e degustado num prato de agate, de uma eterna panela de ferro, escrita com pena e com muita, muita sardade do tempo de Dante, como diz os mais antigos. 





O EDITOR



NA

CASA de TAIPA









         Concorda-se que todo escritor ganha por esmerar-se na linguagem, mas o que mais ganha é, com certeza, aquele que se atreve escrever numa linguagem humilde, clara e cotidiana, acessível, pois a todos.


Bonadia





Dedico esta obra

 André, Kelli e Sabrina.

A vocês leitores, esta obra, Casa de Taipa, porque ela ainda existe.

O Autor


Tempos de dantes


Chovia muito naquela manhã da segunda feira, 12 de fevereiro de 1962. No casebre de pau-a-pique, o cheiro de barro molhado exalava pelos arredores de minha esteira. Pela fresta, entre o barro e a taquara, era agradável ver as gotas de chuva que dissolviam a terra e levava os sabugos de milho deixados pelo Lamarca; o leitãozinho de estimação. Ainda sonolento senti um pingo d’ água em meu nariz que vazou pelo sapé, momento este que minha mãe já com uma vassoura de guanxuma em punho, inquisilhou meu pai. Pela milésima vez, durante os 20 anos de matrimonio, segundo o Doutor Bevilacci, ela sofria de depressão compulsiva hereditária, um mal que deixa a pessoa desequilibradamente agressiva, e não consegue controlar ou conviver com pessoas por mais de três dias sem provocar brigas ou discussão, sendo a personalidade do portador, difícil de desconfiar pela simpatia que reflete pela habilidade e perfeccionismo de suas ações.

                   Decididamente levantou e saiu de mansinho, sem dizer uma palavra, encilhou o seu tordilho e se foi a caminho de vereda. O aguaceiro molhava o arreio envelhecido pelo tempo. Num gesto aborrecido e triste, espia em direção da fresta pela qual eu acostumava ver a criação comendo milho e ciscando o chão.


Um Ano Depois


As noites eram sempre vazias para mim, meus outros irmãos viviam com minha madrinha Efigênia, eu era o caçula e sentia a ausência do paparico daquele que me chamava de: Meu “Sabuguinho”. Sempre coçava as costas de papai quando chegava da roça, tirava sua bota e trazia sempre uma gamelinha com água morna para lavar os seus pés, em troca, sempre ganhava umas balinhas de hortelã daquelas ainda encapadas com papel.

-                     Nhonhô, já comeu a seu piche? – ralhou mamãe, móque é bobo – depois debulhe o milho e dê pras galinhas e pros porquinho, Pras criação.

Ao levantar-me de meu banquinho de cerne, preferido, fui recolher minha esteira. Para minha surpresa, embaixo da velha cama em que meus pais dormiam, um pacotinho de bala esparramado pelo chão, ainda derretido pelo calor, com certeza  não lembrou de dar-me no dia em que saiu de casa; imaginei.

- Nhonhô! – berra minha mãe – vamô menino – as aves vão morrê de fome. Num quero que ocê cresça como o traste de seu pai. Uma lágrima rolou pelo meu rosto e disfarcei para que minha mão não ralhasse comigo, pois no fundo ela ciava dos paparicos dele, afinal, porque meu pai não voltou? Será que foi só porque ela ralhou? Eu sempre achei que algo de estranho estava acontecendo.


Finar de semana No rancho da madrinha


Nhô Lau – um grande amigo de meu pai – que devereda portava em minha casa para tomar um górpe de café torrado na hora, temperado com garapa e prosear. Passou naquela manhã de sexta-feira, bateu palma. Pela fresta da parede, espiei e dei um salto da esteira molhada, agora de xixi. O sol estava escaldante lá fora, de rebentar mamona comóde no dizer dos mais antigos.

-         Porte Nhô Lau, bom dia!

Cumprimentei-o e fui me aproximando da carroça que era meu divertimento preferido, enquanto eles proseavam.

-Nhô! – chamou Nhô Lau – vim busca mecê pra passeá na vila, cadê sua mãe, ta em argure?, Campeie, Espero que ela num cie Chame que vô pedi pra ela deixá mecê i comigo.

-Bom dia Nhô Lau!  Quanto tempo? Mecê já queimô a roça?, Perguntou mamãe.Deixe as coivara pra mim ome.

-Já cumadi. E o cumpadi, nada de notícia? Quê será aconteceu com o home, muié?, mece ta costeando com o pobre.

-Num sei não, mais vamo mudá de assunto. Nhô Lau, onde mecê tá indo mesmo?

-Pra vila né? – É que eu carecia de leva Nhonhô comigo de camarada, se mece num ciá dele, só que vô vortá só dumingo, se mecê num simportá e cunfiá em nheu.

-Claro cumpadi! Pode i sim e se Nhonhô quisé ele pode visitá a cumadi Efigênia, sua madrinha, que faiz tempo que ele num vê, num esqueça de pedi bença a ela.


A Caminho da Vila


Para a viagem ficar mais gostosa, Nhô Lau levou um radinho de pilha e deixou que eu segurasse, e eu segui com o ouvido colado nele, até que Nhô Lau me despertou com uma pergunta: - Nhonhô, mecê num tem sardade de vosso pai? Fiquei em silêncio, momento este em que ele me abraçou, pois comecei a chorar como um enfarado e perguntei se ele sabia onde meu pai estava, e o porquê dele ter picado a mula. Nhô Lau ficou matutando e apenas me disse que eu era muito pirralho para entender coisa de adulto, só me adiantou que meu pai éra um homem bom e, tudo que estava acontecendo, tinha um motivo e meu pai, jamais ia se esquecer de mim.

                   Ao chegar na Vila, após uma hora viajando uns 13 quilômetros, minha madrinha logo me reconheceu e avisou toda a casa que o “Sabuguinho de milho” ia chegando. Meus irmãos rodearam a charrete. Ainda vergonhentos com a distância familiar, seguraram pela minha mão e me levaram para o interior da casa, juntamente com Nhô Lau que bateu uma pressa de seguir rumo e logo sussurrou: - É Sabuguinho pelo djeito, móque ocê qué ficá qui né? Respondi vagamente que sim. Mas antes acompanhei Nhô Lau até a carroça e perguntei: - Nhô Lau mecê sabe de alguma coisa?

-                     Sei sim Sabuguinho. Óia, num fique aborrido,  qui tudo vai cabar bem, e ... Nesse instante, a madrinha me chamou para tomar café, convidando também meu amigo que agradeceu, pois estava com pressa de chegar a seu destino, que seria mais uns vinte minutos de carroça, mas num deixou de dar uma gorpada na caneca de agate, no café pelando de quente.                  

-                     Aquele ar de surpresa deixou-me perplexo, pois Nhô Lau sabia de algo importante, talvez não do paradeiro de papai, mais sim dos motivos que levaram a sair de casa sem hesitar.

                   Papai era um homem amoroso, familiar e trabalhador. A bebida e o fumo não faziam parte de sua vida, a não ser nos últimos meses que antecederam sua saída.


A conversa não Não passou pra lá do rio



A tarde ainda nem tinha declinado. O cheirinho de feijão da roça cozido à lenha, na panela de ferro, já fazia parte do cenário estomacal.  A viúva, minha madrinha, entretida com as panelas e a fumaça que a fazia lacrimejar, de nada reclamava. Ao perceber que eu estava rolando pelo chão, chamou-me a atenção. Voltou-se para mim e perguntou se estava sentindo saudades de meu pai. Fiz que não entendesse a pergunta, nesse instante a vizinha adentrou e foi logo interrogando sobre mim.

-         Este é o meu “Sabuguinho” sapeca? Quantos anos?

-         Dez -, respondeu minha madrinha.

-                     Foi esse que o pai foi embora prucausa da muié ter...

-                     Um psiu prolongado e cuidadoso interrompeu o diálogo, ao perceber que eu havia percebido a “gafe”.

-                     Que é madrinha? – perguntei. Foi quando madrinha murmurou o popular ditado; é rodinha de especula,  “A conversa não passou pra lá do rio”só pra me costear, realmente a conversa não, mas a linguaruda chegou a lamber as minhas orelhas. Fiquei curioso em saber o que todo mundo sabia menos eu, se é coisa de adulto, quem mais vinha sofrendo com isso era eu, mas ficou por isso mesmo.



Rotina no Armazém Secos e Molhados Do Silva


Cinco anos se passaram após aquela visita à casa da madrinha. Lembro-me que após isto, estive lá apenas duas ou três vezes. Nhô Lau – meu velho amigo – anda agora capengando devido a uma enfermidade que o acometeu. Mas não perdeu o pique, o sorriso velho e maroto do contador de causos, ainda era para mim o retrato de meu pai. Talvez, meu maior prazer fosse estar próximo a ele para ouvi-lo ainda que me chamasse de “Sabuguinho de Milho”. Imaginemos eu, com quinze anos, sendo para ele como um filho, pois não conseguiu realizar o sonho de ser pai.

                   Estava cursando o segundo normal, o computador ainda era um sonho, navegar na internet não era coisa de matuto ou caipira, de ninguém ainda. Mas a felicidade de trepar nas árvores e tomar banho de riacho era mais divertida que qualquer bem de consumo, sem desprezar as responsabilidades diárias. Indicado por Nhô Lau, onde passei a chamá-lo de Sêo Lau, mesmo contra a sua vontade, talvez por vergonha dos colegas que iam a sua chácara, em minha Campânia, para se divertir ali pelos arredores.

                   Fui chamado para trabalhar em uma mercearia na vila, o “Silva Secos e Molhados e Armarinhos em Geral”, que na verdade, a graça de batismo , era Silvério da Tidulina. Como o nome já dizia, havia de tudo e não faltava os “escora balcão”, aqueles que após os coivaras ou mutirão, iam tomar a velha cachaça. Lembro-me que a mais pedida era a “Tatuzinho”, o cheiro da pinga misturado com o fumo de corda, o suspiro e o pé de moleque da confiança, o BHC, a fazenda nova e o alimento, viravam uma salada mista, onde muitos entravam só para sentir o exalar do perfume.

                   Na rodinha, não faltava os contadores de causos e aqueles que desabafavam a reação da bebida na cara dos companheiros, não faltava também à recordação do velho assunto: o paradeiro de meu pai. Quando alguém mencionava alguma coisa, outros murmuravam algo, como se não fosse para que eu percebesse.

                   Após a agitação do encontro e desencontro, onde a fantasia do interior e a realidade da vida, na somatória geral me deram respaldo de muitas realizações e felicidades, num dia chuvoso, o empório vazio, dava a impressão de que a despensa de todos estava cheia de tudo. Folheando o jornal “A baixada do Ribeira, da Jornalista” S.Correia.

Aguém coloca a mão sobre a página. Quando levanto a cabeça, uma moça de seus quatorze para quinze anos, olhava-me. Os pingos de seus cabelos chegavam a enrugar a folha de jornal.

-                     Desculpe! – disse-me. – Ocê tem banha? Num tom de gracejo, respondi:

-                     Não muito, mais dá pro gasto. Ela caiu na risada e fez um silêncio, acabei ficando sem graça e continuei: - Tem sim! Fui buscar o pacote do produto e, ao voltar para ela, percebi que continuava me olhando. Eu não estava acostumado com aquela cena, mais adorei. As gotas de chuva ainda escorriam pelos lábios carnudos e, seus dentes, que pareciam polidos com carvão, sorriam vagamente a cada gesto que eu fazia.

-                     Você quê mais alguma coisa? Perguntei.

-                     Quero sim! – respondeu me entregando uma listinha com quase quinze itens, que uma donzela não conseguiria carregar sozinha. Momento este que, seu Severino Silva, dono da mercearia, adentrou no estabelecimento e me pediu que atendesse bem a moça. No mesmo instante o patrão pergunta:

-                     Como vai o seu pai Maria Elena? O doutor já voltou de

-                      Viagem? Avisa pra ele que acabou de chegar a carne de sol, do jeito que ele gosta.

-                     Tá bom – respondeu a moça vagamente.

Continuou seu Silva: - Sabuguinho ajude a moça. Leve as compras para ela na bicicleta.

Desta vez não gostei muito do apelido, já estava bem grande para ser chamado de “Nhonhô ou Sabuguinho de Milho”. Mas seu Silva havia feito de propósito.

         Arrumei a sacola no bagageiro dianteiro da bicicleta. Maria Elena foi me guiando, pois não sabia direito o caminho de sua residência. Em certa altura da viagem, ela se vira para mim se equilibrando na sua monareta enfeitada, pergunta o meu verdadeiro nome, ainda ironizando o “Sabuguinho de Milho”. Nesse momento, diminuímos, e fui obrigado a contar a minha história. Fato este que despertou curiosidade na bonita e fina jovem.

Ao chegarmos no casarão, coloquei a bicicleta no suporte e carreguei as sacolas até a porta de sua residência. A mãe de Elena veio ao nosso encontro, perguntando se não estava faltando nada, pois na verdade, ela havia  esquecido de marcar um engradado de guaraná para servir aos convidados do dia seguinte, que iriam homenagear o Doutor aniversariante. O guaraná tinha nesta época na tampa, uma rolha de cortiça. Prontamente me dispus a buscar a caixa para ela, quando Maria Elena me interrompeu para me oferecer um copo de limonada. Mesmo sedento e suado pelo mormaço, após a chuva, tentei enjeitar.

Insistentemente, me encaminhou até a cozinha onde me fez sentar e provar do cuscuz e tomar a limonada feita pela sinhá Domingas. Ao retornar, sua mãe me agradeceu e recomendou que trouxesse a bebida no outro dia, mesmo com minha insistência de retornar logo mais. Ainda me chamou no portão, convidando-me para a cerimônia, constrangendo-me mais ainda. Mesmo assim, aceitei o convite. Querendo, mais cismado, em olhar para trás, parei a bicicleta para verificar o pneu traseiro e então pude perceber que a moça, na sacada, olhava talvez em minha direção.

O patrão brincou com a demora, entendendo o espírito jovem do empregado e a renda da cliente. Anotou a encomenda e entregou-me um presente, pedindo que o levasse ao doutor, visto que não gostava muito de ir a festas.

O final de semana era muito agitado no comércio, onde os camaradas aproveitavam a folga pra fazer compras e tomar os porres, mas mesmo assim, seu Silva insistiu para que eu fosse levar a bebida e também ficasse para a festa. Caso ele precisasse de algo, eu estaria à disposição. Até que gostei da idéia, e fui cumprir o meu papel de funcionário e convidado. Quis ser prestativo e até que tentei fazer algo, mas a mãe de Elena, Dona Maria, me proibiu de qualquer gesto que insinuasse trabalho, parecia até que, fazer companhia para sua caçula, já era um grande serviço.

Os convidados foram chegando, uns de Galaxie, outros de DKV, Gordine, Jeep, Aero Willis, corcel GT, cavalos, charretes, enfim, da elite à humildade. Havia de tudo e também muita fartura. Nunca tinha visto uma festa daquele porte. Confesso que fiquei encantado, e, encantado duas vezes.

Enquanto os convidados se serviam, Elena percebendo a minha timidez preparou um prato recheado e trouxe-me. Num ato de carinho, ofereceu-me o primeiro  na boca. Confesso que fui tolo por não ter aceitado, fazendo-a ficar sem graça, mas consegui consertar a tempo, oferecendo-lhe um garfo de salada de maionese. Prontamente ela aceitou, olhando no fundo de meus olhos, creio que seu pai percebeu. Aproximou-se, também com ar de ingênuo, e perguntou-me se eu estava me divertindo. Na seqüência, pediu que eu lhe procurasse no dia seguinte. Quis dar ênfase ao assunto, mas ele, discretamente, levou para outro rumo, deixando um calafrio e o suspense na manhã seguinte. Elena, preocupada com o meu semblante, segurou em minha mão suada e fria, brincou:

-         É  Sab..., Não. Como é mesmo seu nome?

-                     Eu acho que o meu pai vai chamá-lo para trabalhar com ele. Você vai né? Apenas sorri e ela continuou segurando em minhas mãos, agora normal, sentindo seu calor, quis me despedir da moça. Simpaticamente ela me impedia, no momento em que o telefone toca e ela é convocada por um dos empregados para atender. Por mais de meia hora ficou a conversar. Meio chateada e sem graça, retorna ao meu encontro, calada, avisando-me que iria se recolher, dando-me a oportunidade do último sorriso e os olhos profundos dizendo algo sem palavras.


Começo de uma nova história


Após uma merecida folga de domingo, na segunda de manhã, entre o cantar do galo e o gorjear dos pássaros, segui para mais um dia de rotina. Nas casas onde passava, o volume dos “Zé Betio”,da Enezita, do Ranchinho, oferecia água para acordar os mais sonolentos. O barulho da colher temperando o café, e o cheiro dos bolinhos, registrava os bons tempos de uma década que tecnologia ainda não a excluía.
Ao chegar ao empório, seu Silva parecia querer me contar algo importante. Aproximou-se de mim, colocou as mãos sobre os meus ombros e disse:
- Olha! Meu bom rapaz, o que eu tinha que fazer por mecê, eu já fiz, mas algo melhor tenho para você. Sem entender nada, dei toda atenção e ele continuou. – É uma perda grande para mim, pois mecê tem me ajudado muito. Puxou a gaveta da registradora e resgatou umas notas e entregou-me, pegou mais um envelope grande com um calhamaço de papel dentro e disse-me: - Olha, em consideração ao seu pai e, ao meu grande amigo Nhô Lau, que me apresentou você, tá aqui um presente e espero que ajude.
- Não posso pegar seu Silva, disse preocupado, e ele, respondeu-me que ainda estava devendo para mim.
Peguei minhas coisas, deixei lá apenas a minha bicama (aquela que arma e desarma) e fui para o sítio. Minha mãe já embravecida ralhou de longe.
- Moleque, esqueceu que tem mãe e que tem casa? A gente cria filho e depois ele desencasqueta a djente. Mas ao me aproximar, um abraço firme e carinhoso parecia esquecer toda braveza.
- Mãe!, disse, preciso voltar ainda hoje para cidade, Doutor Mário quer falar comigo.
E, nem deu tempo de contar para minha mãe, que fui enchugado do empório, tomei aquele cafezinho gostoso com pamonha e berequeca,. Mamãe encheu o ferro de brasa e adiantou minha camisa “Volta ao mundo”, calcei minha galocha, enquanto resmungava: - É, Nhô Lau vive perguntando por você, ele disse que você abandonou, seus irmãos vão vir pra cá sábado, espero que você estedje aqui. E essa sacolada de mercadoria é nossa?
- É sim mamãe, é sim, beijo mãe, Deus a abençoe, tô indo.
Numa bela fachada de estilo francês, com um letreiro de ferro fundido, o nome do advogado Dr. Mário Pierre. A sala de recepção estava lotada de gente fina, homens de bota de couro, galochas, e de borracha. Num cantinho da sala, lia um almanaque enquanto aguardava a atendente, uma senhora de idade, vezes por vezes, olhava por cima dos óculos meio vidro, como querendo me perguntar algo, até que me chamou.
- Você é o André?
- Sou sim, - respondi.
- Ora, se tivesse me avisado, não teria esperado tanto tempo. Tá vendo aquela sala ali no outro lado? Então vá até lá, que tem alguém te esperando. Rapidamente, fugindo dos olhos curiosos da matuta que esticava os ouvidos para ouvir e saber da conversa segui para lá.
Um luxo, um perfume que dava até pena de entrar, ao chegar à sala, já ansiosa e apreensiva, a moça da fazenda, a filha do patrão, a garota do cabelo molhado de chuva, que pedalou a monareta, estava novamente na minha frente. Só que, agora, como uma deusa irreconhecível. Com a mesma simpatia, cumprimentou-me segurando em minhas mãos. Olhando em meus olhos, pediu que eu entrasse em outra sala ainda mais chique e perfumada, atendeu mais alguém e logo entrou.
- Meu pai já falou contigo André?
- Não, respondi.
- Só para te adiantar, ele gostou muito de você, e espero que aceite a proposta de vir ajudar a cuidar de nossos negócios, pois ele quer que eu vá estudar no exterior. Aquilo gelou novamente a minha barriga, pois um sentimento além de amizade tinha brotado e, interesses pessoais não passavam pela minha cabeça, visto que eu vinha de uma família simples e ela de uma educação exemplar.
- Exterior? – perguntei.
- Isso mesmo – respondeu -, mas só daqui uns dois anos, assim que terminar o colegial.
Aquilo me aliviou e foi ali que começou um momento íntimo de carinho e ternura, onde ela quis saber de mim, qual seria o meu sentimento em relação a ela, visto que eu jamais havia insinuado qualquer sentimento que viesse confundir a nossa sincera amizade.
Depois de uma longa conversa com o Dr. Mário e seu secretário de gabinete, foram providenciadas as papeletas. Elena comemorava comigo a contratação do mais novo funcionário da casa, que juntos apesar de pouca idade, iríamos cuidar dos negócios imobiliários, sempre assessorados pelo Capataz de plantão.
Dr. Mário ofereceu-me uma carona. Antes que eu aceitasse ou agradecesse, Elena informa ao pai que gostaria de me convidar para irmos a uma chiboca a duas quadras do escritório. A recomendação foi apenas de que não chegássemos muito tarde em casa, perguntou se ela tinha algum dinheiro, bateu em meu ombro e seguiu caminho em seu Cincas azul e branco.
Apesar de não ter idade suficiente para dirigir, adentrou em seu Fusquinha e, num ar debochado, estendeu sua mão como gesto de cortesia, convidando-me a tomar o banco da frente. Meio arisco entrei. Pediu-me desculpas pelo cheiro de mofo, do tempo guardado e sem uso do carro. Em pulinhos, o automóvel da geração, entra na rua esburacada. Preocupado com a direção, seguro firme na porta e tento disfarçar, pois cada gesto de Elena, é uma fantasia onde começo a viver uma outra realidade.
Ao chegarmos a frente ao café, discretamente puxa o freio de mão e esbarra suas delicadas e macias mãos nas minhas apostas. Percebi que foi por gosto, proposital na linguagem atual. Correspondi com um leve movimento. Ela olha em meus olhos e se aproxima. Num movimento inibido e anestésico, sem insinuar uma palavra, seus macios lábios roçam aos meus. Tomo-a em um abraço destro pela minha posição, balbucia o meu nome e oferece-me mais um suave e doce beijo, desta vez mais profundo e prolongado. Ela abre primeiramente a porta e em seguida vou ao seu encontro e o acanhamento foi para as cucuias. Abracei-a e tomei a iniciativa: rocei as minhas mãos em seus cabelos, aquele mesmo que quis um dia enxugar. Ela declarou todo seu amor por mim, conversamos por várias horas roubando o tempo até mesmo das maria mole e dos suspiros e do café.
Ao percebemos a hora, retornamos à sua residência. Sua mãe preocupada, já havia mandado o empregado ao nosso encontro, e, no desencontro, chegamos antes dele. Preocupada, mas sem perder a simpatia, força-me a entrar e participar do jantar. Desejoso em prolongar a noite, sem fazer cerimônia, senta-me ao seu lado à mesa, rodeado por olhares marotos e insinuantes. Ficamos conversando por horas duas na varanda antes de nos recolher para repousar, cada um em sua cama, é óbvio! Num quarto de hóspede dos caseiros, passei a noite a sonhar acordado. As estrelas, o cheiro das flores de laranjeiras, tornaram minha noite ainda mais bonita e inesquecível. Abro a tramela e ainda posso observar a lamparina acesa do quarto da musa em trajes apagando-a no momento em que abro a janela num sinal de boa noite ou de insinuação.
Nem bem o galo cantou o empregado na janela: - André!, Senhor André, é pra vós mecê se arruma que o patrão qué o senhor na cidade com ele. Mais que depressa, pulo da cama e me arrumo. O café já está na mesa, só o cenário do fogão de lenha ao fundo e a decoração da mesona cheia de pães caseiros e os derivados do leite, já alimentam. Rapidamente, Dr. Mário toma apenas uma xícara de café, com minha barriga roncando de fome, procuro seguir o cerimonial e levanto da mesa decepcionando meu pobre estômago.
No caminho da cidade, num luxuoso automóvel, após um breve silêncio de ambos, uma voz de esquerda indaga sobre minhas condições, pois já havia treinado o ofício em todas suas fases. Apesar de não ser bem aquilo que queria, fui sincero e enfático onde fui compreendido. Parecia que a sua preocupação não era com o meu trabalho, e sim com minha vida pessoal.
- André – questiona-me outra vez – Como vai o seu relacionamento com a “Tuti”?
- “Tuti”?. Retruco.
- Elena! É um nome carinhoso – disse-me.
Fiquei confuso, e falei das qualidades das quais ele já sabia, mas as curiosidades seguintes foram em tons mais íntimos. Não me constrangeu pelo fato de ele ter colocado sua filha como interessada pela minha pessoa, deixou-me mais tranqüilo. Sua técnica advocacional arrancou de mim tudo que queria saber em poucos segundos, sem deixar de me falar e de me prevenir do romance que Elena teve até pouco tempo, acabado com a mudança de Felipe para estudar no exterior, um menino, filho de um outro fazendeiro local.
Elena nunca tinha me falado em outra pessoa, talvez nunca tivéssemos oportunidade de falar sobre esse assunto mais intimamente. Mas pude deduzir algo relacionado com a revelação de seu pai, pois o primeiro dia que estive na fazenda, ela atendeu a um telefonema e percebi seu semblante diferente. Quem sabe, se naquele fim do romance, começou o namoro...
Após um mês agitado de trabalho no escritório imobiliário, fui passar um fim de semana na casa de minha mãe. Quis convidar Elena, mas ela havia deixado um recado com sua mãe, de que iria para a casa de uma amiga, num chá de bebê. Tomei a condução, na época chamava “Carro toldo”.Os matutos, chamavam “Carro Tordo”, lembro-me, era um nacional caixa dura.
Nem bem desci do carro, minha mãe, que conversava com a vizinha, saltou toda orgulhosa abraçando-me e apresentando-me:- Esse é meu futuro Doutor, comadre. Trabalha na cidade grande, mecê vê como esticô o danado? Num sei não, mas parece que tá té namorando. Aquele papo de comadre, já não fazia parte do meu currículo vocabulário, mas não poderia perder as raízes. Após abaixar a poeira dos paparicos, fui logo perguntando pelo meu querido Nhô Lau. Contou que o mesmo já havia me procurado várias vezes nesta semana. Coitado! Tomei um rápido café com ela e a comadre, nem tão rápido como o do patrão e fomos para a casa dele. Qual surpresa foi a minha, quando o vi. Lau caminhava normalmente, com um baita sorriso maroto, o velho amigo, discretamente deixou uma lágrima cair.
- “Minino”! – disse-me ele -, ocê carece umas parmadas, onde já se viu judiá de seu véio Lau? Totó, o seu vira-lata de estimação borrou toda minha calça farveste. Sai daí daninho! – ralhou, embrabecido, Porte Nhonhô, porte comadre, entre Nhá Rita, e dá-lhe café. Ô povinho pra gostar de café!
Sempre que nos encontrávamos, um silêncio pairava. Nhô Lau queria contar-me tudo que ocorreu durante a minha ausência. A reforma da charrete, as ninhadas, as colheitas, enfim, queria ser retribuído com as novidades. Mais um vez, minha mãe ficaria sozinha, pois Lau implorou para que eu posasse em sua casa e mamãe voltou com a comadre.

A noite Das revelações


Pareceu-me que Lau estava arrependido de estar tão próximo de mim outra vez, pois sempre que percebia um aproximar de assuntos referentes a vidas remotas, dava as costas e esticava o fogo com um sopro certeiro. O cheiro do feijão novo e do arroz fazia-me viajar no tempo. A noite foi chegando. Da janela, fico a observar o movimento das aves e dos animais que, sem líder, seguem para seus poleiros, casa e ninhos. A lua cheia faz refletir o olhar assombroso da coruja. O exibido vagalume esnoba a sua exclusividade.

- “Nhonhô”, não!, “Sabuguinho de milho”, não!, “André”, e que infistula de nome – brinca Nhô Lau – vem comê, meu filho! Num tom sereno e gentil, pede-me que eu faça a oração de agradecimento pelo jantar. A fartura era sem medida. Um pouco de cada: torresmo, carne de porco, frango e até um pedaço de “paca”, pois nessa época a caça era farta e ninguém matava para comercializar.

- Coma tudo, rapaiz pra num sobejá, disse Nhô Lau.

No decorrer do jantar, falamos de vários assuntos e colocamos nossa conversa em dia. Enquanto a água de café fervia na panela de ferro, conversávamos e palitávamos os dentes com lascas dos gravetos expostos no fogão de lenha.

- “Lau!”- questionou.

- Não Nhonhô! Hodje não. Tá bem moleque daninho, chega de martírio, a Bíblia diz que “E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Olha filho, creio que mecê não é mais “Sabuguinho de milho”. Pra mim você é o Nhonhô de sempre, sua mãe antes de se casar com vosso pai teve outro companheiro, onde seus irmãos são só por parte de mãe.

Não perguntei nada, apenas ouvia sempre observando o barulho da ebulição na chaleira.

- Tem mais, meu filho: o pai de seus irmãos não dava sossego pro seu pai, nem pra sua mãe. Vivia rodeando a casa pra ver as crianças. Motivo que incomodou seu pai, provocando várias discussões, obrigando seus irmãos a irem morar com a sua madrinha. Lau ofereceu-me uma caneca de agâte de café, onde não percebe nem o coar do pó. Mal pude tomar devido à quentura, bem maior que a temperatura do café da cidade.

- Seu pai, filho – continua ele –, seu pai agüentou de mais. Ele sofreu muito meu filho. A primeira esposa o abandonou quando ele mais precisava de uma companheira, ele foi mordido de cobra e quase não agüentou. Fizemos vários remédios caseiros, pó de café, taioba, leite de umbigo de banana... Graças à oração da igreja e o Dr. Mário, que o bardeou para a capitar, foi a salvação. Foi aí que ele conheceu sua mãe, sendo abandonado pela outra em sua estadia no hospital, ficou vários dias em repouso aqui em casa, e Isabér, sua mãe, morava logo ali, deixava as crianças ainda pequenas e corria pra cá enquanto eu ia para o roçado.

- E o antigo marido de minha mãe, Lau?

- Ninguém mais sôbe dele, Nhonhô, assim como o seu pai também.

- E por quê meu pai não voltou mais pra casa nhô Lau?

- Fio! Perdoe eu, mais o seu pai tem sangue de barata, uma mosca morta como diz o adágio. Eles sempre labutam, mas não teve apoio. Quando sua mãe conheceu ele, continua , ela me pergunto se ele tinha posse, até que tinha, mas ele teve que vendê a terra pra ajudá no tratamento e no sustento das baguazinho, quando mecê nasceu, só restava a morada onde tá té hoje, depois disso foi enguiço de vereda, humilhação sem o coitado merecê, inté que ele silenciosamente disse um basta, como ocê mesmo presencio, e tem mais, num quero ficá com a moringa pesada. Seu pai, Nhonhô, foi visto drumindo num posto da beira federar prus lado da BR-2.

Dei um pulo do banquinho, esborrifou café pelo assoalho vermelhão.

- Onde nhô Lau? Quem falou? Diga-me!

- Carma, carma – colocou-me sentado novamente – num sei direito, ele tá caminhando, o coroné Duardo falô, mas não se sabe. Inté pedi prus camarada do fazendero becervá quando fô pru Sur, se num vê arguém iguar, gerarmente, o vivente que seguem essa sina, entram na cidade pra pedi o pão.

As palavras de conforto de Nhô Lau, fez-me acalmar e dormir tranqüilo, prometendo ir ao encontro de papai, Acordei várias vezes pela manhã imaginando coisas, até que senti novamente a companhia agradável da cantiga seqüencial dos galos, pássaros, animais e aves, anunciando o alvorecer.

Pelas estradas do Brasil.


A manhã ensolarada, fazia um convite para um bom banho de cachoeira, mas a ansiedade me levou em direção à cidade, pra casa do Dr. Mário. A carroça de Nhô Lau, parecia motorizada, uma parada brusca me deixou atônito, onde perguntei se algo tinha ocorrido e Nhô Lau repondeu-me que sim. Ele, muito religioso e cristão, pediu que eu descesse da carroça, e ali em pé fez uma oração em agradecimento, onde em suas humildes palavras, mencionou o Salmo 23.

Desci da carroça novamente, onde ali fiz um pacto divino. Minutos depois, chegamos na fazenda, na casa de Elena. Nem precisou bater palmas, parecia ansiosa e veio ao meu encontro. Ao olhar em meus olhos, logo foi perguntando se eu havia chorado. Disse que não. Timidamente ela me abraça, e logo após, cumprimenta Lau, levando-nos para a varanda, onde contei o resumo de toda a história e da maratona que iríamos fazer para trazer de volta o meu velho pai.

O doutor ainda não havia chegado de uma visita de emergência, já quase ao meio-dia, Dr. Mário chega onde prontamente nos recebeu e falamos de todo o ocorrido, introduzidos por Elena, parecia mais ansiosa que nós em resolver o caso, desesperadamente, pediu que seu pai mandasse conosco um de seus motoristas para a busca

- Não é assim filha – disse o; vamos entrar e esquematizar um plano, para que não demos volta em torno de nós mesmos. Primeiro vamos pegar um retrato, vamos levá-la até a gráfica do Ferraz, em seguida mandaremos fazer um clichê e distribuiremos cartazes pela cidade, onde supostamente seu pai tenha passado, as pessoas que o virem, ligarão para o escritório e assim iremos ao encontro.

Foi o que fizemos. Em dois dias, os 50 impressos ficaram prontos e na companhia de um motorista fomos às cidades distribuindo cartazes e nos informando do paradeiro.

As histórias eram de doer o coração, pois papai não tinha as características de um andarilho apesar de ter seus motivos, não eram tão grandes para se tornar um indigente.

Seguimos rumo a cidades e vilas que supostamente, poderiam ser o paradeiro ou local de passagem de andarilhos, folhetos em punho , foram distribuídos por mais de 300 Km de viagem.

Nem bem chegamos a um pequeno posto de combustível, avisto um homem maltrapilho vasculhando, me aproximo e tento dialogar. Ainda retraído de cabeça baixa, ele se afasta sem dizer uma só palavra, numa nova investida o homem esbraveja palavrões , momento em que ofereço um níquel para tomar um café, conseguindo assim convencê-lo a me dar apenas uma informação: se havia visto aquele homem do cartaz. Com suas mãos sujas e seu corpo fedorento, ele apenas menciona:-“Picada de Cobra”! Dormia ali, naquela lata ali, agradeci ao homem, e caminhei até a pensão próxima ao posto para pedir mais informações. Dona Catarina, a proprietária, logo foi elogiando o andarilho, mesmo sem saber quem eu era.

- Conheci sim, moço – disse-me – e tem mais: não comia e não pegava nada sem antes fazer algum trabalho. Olhe em volta da casa! Tudo limpinho, não ficava devarde não, pois antes de deixar a vila fez uma limpeza. só pra te adiantar não disse para onde ia e ainda deixou um saco de linhagem . afinal o que você é dele, perguntou-me.

- Filho-, respondi.

- Moço – continuou -, vá atrás de vosso pai, pois ele é um homem bom. Lembro-me da história da picada de cobra, do filho que deixou, só não quis me dizer porque saiu pro mundão. Aqui, todos o conhecem por “Picada de Cobra”, agora me deixe continuar com o rango que os viajantes já estão chegando.

Tive medo, confesso, de recolher o saco de linhagem. Lau, sem hesitar, tomou a bagagem, ainda cheia de latas, uma manta toda esfarrapada e conhecida , algumas caixas de papelão que serviam como cama ali no local. agradeci as boas informações e como maior agradecimento, fizemos uma rápida refeição e seguimos viagem rumo ao desconhecido. Distribuímos a panfletagem durante dois dias seguidos.

Ao chegarmos na vila da Capelinha no Vale do Ribeira, encontramos fortes vestígios de um homem com as mesmas características, seguimos em direção ao sul.

Na entrada da cidade, continuamos o trabalho de busca, onde logo encontramos mais vestígio, mas desta vez decepcionantes. Onde soubemos que políticos do estado mandaram recolher todos os indigentes em um ônibus e encaminharam para outra cidade do Vale, retornamos à cidade origem, um pouco desesperançosos, mas a vida tinha que continuar.

Exploração de menores


A vida voltou quase ao normal, um prolongado beijo selou a saudade guardada pelos breves, mas longos dias que passamos longe um do outro, amparados pelo ombro amigo de Lau e Doutor. Mário, as mãos de Elena passearam pelo meu rosto, minha mãe ao lado parecia fria diante da situação, sobre o gramado verdejante da fazenda do patrão, um empregado desce rapidamente trazendo um recado, que a princípio me parecia, que quase com certeza, sendo resultado satisfatório dos panfletos, mas a notícia vinha de outro lado, do vilarejo onde residiam minhas duas irmãs e um irmão por parte só de mãe.

Olha seo André, disse-me o moço, tem um recado pra mecê ir rápido rasteiro pra lá, tem gente fazendo mar pra vossas irmãs. Sem perca de tempo, com o motor em brasas, nós cinco seguimos rumo aos fatos, seguindo sempre as recomendações técnicas e jurídicas de quem sabe (se não fosse só um sonho), do futuro sogro.

As notícias já haviam vazado pelo vilarejo afora. Reunimos numa sala, a madrinha, minhas duas irmãs e ouvimos o relato de que tal de Fáfa estava aliciando menores para praticar atos impróprios às pessoas de bem.

Regininha, de 13 anos, foi logo remedando de como ela fazia para cativar os clientes caminhoneiros que faziam paradas no restaurante próximo dali .

- Olha Nhonhô, disse-me, Nhonhô não, concertou André, ela pediu para que nós arranjasse um vestido bem curto, passasse bastante batom e pó de arroz, ela deu até um perfume Dama para nós, disse que quando visse um, desse uma olhadinha e saísse rebolando bem assim ó, e remedou. Oferecesse um preço, caso não quisesse, abaixasse só um pouco, e depois pra repartir os trocados com ela, nós fumos até lá, mas sartemo de banda,

pedi então que Lau e Elena ficassem, pois queria ver de perto a exploração, o aproximar do pátio, ao cair da tarde, logo se aproxima uma adolescente de seus quatorze anos para quinze anos, e ainda meio arisca, pergunta meu nome, respondo vagamente, ela, agora, na companhia de uma crioulinha de corpo já formado, me convida para uma conversa mais íntima, mordendo os carnudos lábios numa insinuação perversa, senta na pequena escada da loja de baterias, e propositadamente, deixa à mostra sua intimidade, já apropriada para atrair os caçadores de aventuras.

Em momento algum quis assustá-las, mas saber tudo que elas já haviam aprendido e adquirido. Com certeza, dividindo com a tal Fáfa. Enquanto conversávamos, crioulinha Marili, se esforçava em mostrar seus mamilos que mal saliência faziam em seu sutiã improvisado. Ao me voltar para ela, logo ficou de costas rebolando o seu vestido curto e desbotado de chita, os clientes pareciam incomodados com minha presença, momento em que Rose pede para esperar, e vai em direção ao caminhoneiro que acabara de estacionar seu Alfa Romeo cara chata, discretamente ele segue, querendo esnobar com o seu torneado corpo saliente e seu excessivo perfume.

Continuo a conversar com Marili, que me convida a ficar com ela. Respondo que não posso.

- Tem namorada? – pergunta ela. Digo que sim.

- Não precisa falar pra ela, continua a adolescente.

Convidou-a então para ir até a casa da madrinha, ela toma um susto. – Você conhece dona...

- Conheço, ela é minha madrinha, rapidamente tenta se esquivar, mas com jeitinho convenço ambas a irem até lá, onde o homem do Alfa cara chata, não logrou êxito na cantada mesquinha.

No caminho da casa, ambas pedem-me que eu fique com ela, dizendo que “Gosta meu”, e em troca dariam informações, ao contrário, coloquei a mão na algibeira e lhes ofereci algum dinheiro a cada uma, onde prontamente nos relata na presença de testemunhas, toda a trajetória dos ensinamentos de Fáfa, descarada mente mostra-nos a cartela do preventivo. Sem nos comprometer, entregamos o caso nas mãos do Dr. Kamini, delegado regional onde nos prometeu preservação de direito, e blitz noturna nos postos.

No caminho de volta para casa, minha mãe resolve ficar uns dias mais com as meninas. Volto com Lau e Elena no banco traseiro. Lau irritado com o caso lamenta: - é o fim do mundo!, E, Elena se esforça e me dá um beijo. O matuto não dá trégua, e em tom de humor pede para respeitar o velho. Ela muda de cor e pede desculpas. Lau ameniza e pede-nos para ficarmos à vontade, chamando-nos de filhos, dizendo que o nosso amor é lindo e precisa ser vivido, mas avisa: - Não avance o sinar, para que o sinar não perca o valor.

- Pode deixar Lau, vamos seguir o seu conselho, completa ela.

A nossa vida parecia uma única aventura, onde sempre a realidade se fazia presente, às vezes decepcionante, mas ao lado da musa, sempre tinha seus instantes agradáveis, onde um forte abraço ou um beijo amenizava as marcas do passado ou a tensão do momento.

Na pele do andarilho


1967, abril, gravetos misturados com pedaços de borracha de pneu e papelão úmidos, ajudava a esquentar a noite, abanada com o vento enviado pelos caminhões que, em alta velocidade cruzavam a BR-2. As rachaduras em meus pés ardiam na sandália improvisada, a saudade ardia muito mais em meu peito, ensopado pela saudade e afeição.


Na roda de amigos, uns vítimas do destino, outros de suas próprias atitudes, entre beberrões, traídos e humilhados, lá estava eu, mau compreendido por mim mesmo. O mais bem sucedido dos mendigos era o pai velho, que abandonado pela família, gozava de uma pequena aposentadoria, onde na vida remota foi torneiro mecânico, sempre exibindo o toco de dedo, contava as notas que às vezes comemorava em um litrinho, mas sempre acabava em discussão.


Ciro, que nunca quis falar de sua vida passada, simpatizava com a minha pessoa, na verdade nós não éramos andarilhos de estrada, talvez a idade nos fez acomodar na cidade por mais tempo, apesar de termos muita vontade de abandonar o Vale do Ribeira e partir para o Litoral. Apesar de Elias ter vindo de Praia Grande, onde por infelicidade, saiu para comprar remédio controlado para seu uso, e por sua aparência não ajudar muito, uma das pessoas que recebia indigente o capturou vindo parar em Cajati.


Voltando a falar de Ciro, numa manhã de muito sol, convidou-me para ir até as proximidades do restaurante da Corina, onde não podíamos chegar perto, para não espantar a freguesia. Cada um com uma latinha, a minha era de manteiga “Aviação”, a de Ciro não me lembro mais, só recordo que estava bem porca. Sentamos na calçada do tal Dr. Wesler e ficamos a conversar enquanto a Tia Corina não percebia a nossa presença pois ao avistar-nos, logo dava aquele costumeiro aceno para que fôssemos buscar um pouco de comida, da mesma que servia aos fregueses. Foi ali que conhecemos Arlindo, um engenheiro de elétrica, que ficou impressionado com nossa história , mas logo saiu deixando um bom trocado, e alguns folhetos na Bíblia, falando do caminho da verdade e da vida. Bem que a gente conhecia, mas vivíamos no atalho da mentira e nos caminho do fim.


- Ciro! Chamei.


- Hum! Resmungou.


- Têm mulher, filhos? Nada respondeu, e após um vago silêncio, ao olhar um caminhão baú, apontou orgulhoso: Tá vendo? É do meu filho, uma bela fábrica, pena que sua mãe estragou tudo, trocou nossa felicidade com outro, achei ela com outro, com outro viu?...Começou chutar tudo que via pela frente, lançou sua marmita no chão, xingando. Tentei segurar, mas saiu correndo em direção à ponte que o governo Ademar de Barros construía recentemente, aparecendo sós à noite, mas já bem alegre com a cachaça que digeriu com os trocados deixados por Arlindo.


Numa noite desta, no beiral da Oficina do Coqueiro, ainda incomodado com o frio, conversávamos animados, onde o assunto, quase nunca era pessoal, pois o nosso silêncio e mistério eram mais com os estranhos. Pude observar Silvério, já com seus 68 anos puxar de seu saco de linhagem, seu pequeno cobertor misturado com latas, litros e um pacote de papel que parecia guardar com orgulho. Foi quando tentou guardar, e olhou para mim perguntando se aquela porcaria tinha alguma validade, ao abrir pude ler em letras garrafais “Diploma de conclusão do curso de engenharia pela UFPR”. A princípio, parecia uma brincadeira, mas ao conversar intimamente, Silvério chamou a atenção de todos falando do motivo que o levou à vida de andarilho.


- Olha! Talvez faltasse força da minha parte, mas batalhei a vida toda, me formei, venci e num dia na empresa fui acusado de responsável pelo desabamento de uma ponte , destruindo famílias, causando vergonha e prejuízo para minha vida profissional. Eu sempre soube do responsável pelo boicote e tragédia, mas meu estado emocional e minha moral já não ajudavam muito. Percebia a rejeição até de meus amigos mais íntimos, apesar de que só agora veio à tona. Mas já estou velho demais para recomeçar. Apossa-se do litro e canta uma canção gauchesca. Lerdo, parecia um repórter disfarçado, o que eu ainda duvido que ele não fosse, pois todos os nossos movimentos eram anotados. Ele que apareceu de repente, e de repente desapareceu entre nós. Mas não faltavam aqueles que pareciam ter nascido andarilhos ou vagabundos de berço.

Os sonhos de valsa



Cinco anos se passaram muitas coisas não deixaram de acontecer, eu já estava bastante maduro para encarar uma nova empreitada, poderia até dizer que, já havia ganhado dinheiro suficiente para deixar o escritório imobiliário e fazer aquilo que mais gostava: ter o meu próprio negócio! Quem sabe até uma chácara de plantas ornamentais para exploração, onde já havia encomendado a Lau que procurasse um terreno adequado, pois terrenos vazavam por minhas mãos, mas de bons sonhos, Lau era bom na procura.

Elena já não era mais a mesma menininha, apesar de um espírito jovem e sem muitas vaidades. Era capaz de usar vestido de chita para acompanhar as jovens do bairro, mais sua humildade já fazia dela uma caipirinha interessante. Precisei fazer negócio com um cliente na capital e Elena foi minha companhia. Nunca fui precipitado, mas não gostava de adiar minhas vontades, onde contei a ela meus ideais, deixando-a insegura, mas me apoiou perguntando se realmente era aquilo que queria.

Ao afirmar, ela agarrou-me, e próxima a meus lábios pediu-me sociedade, caso contrário terminaria comigo. Brinquei dizendo que não, ela ficou de costas emburrada, de bico, fazendo charminho para que eu a agarrasse e mordesse suas lindas orelhas, o que fiz prontamente naquela que não era só minha sócia, e sim dona de todas as minhas propriedades.

No sábado seguinte, era a formatura do colegial e por motivo da viagem, talvez não fosse possível acompanhá-los. Dr. Mário obrigatoriamente teria que dançar a valsa, minha mais velha irmã, por parte de mãe, me intimou a ser seu padrinho, onde não poderia deixar de ir, isso na semana seguinte. Apesar de ter perdido a entrada triunfal dos formandos. Pude pegar o baile no final, quis fazer uma surpresa à minha amada, mas uma amiga que me avistou na portaria, foi logo apontando a me ver. Senti Elena errar os passos, seu pai logo percebeu e acenou-me dividindo o tempo nos braços carinhosos e perfumados da mulher que sussurrou em meus ouvidos: - Quero casar contigo André!

- Agora? Perguntei a ela. Respondeu-me: - te amo te amo.

Entre beijos, abraços e elogios, a festa marcou a noite de formatura, não tão bonita quanto a anterior, quando me formei, onde já sentia saudades das carteiras e dos assentos dos móveis, onde cai várias vezes por molecagem dos débeis colegas que suspendiam, quando íamos à lousa e retornávamos, a surpresa: bunda no chão.

Eduarda, mais uma princesinha amiga de Elena, aproximaram-se mais uma vez para se despedir da colega, pois na semana seguinte estaria de mala pronta e definitiva para o exterior, apesar de não ser tão íntimo, participei das lágrimas de Elena, pois era uma grande amiga e estaria de mudança para estudar na França. Antes do abraço final, Eduarda pergunta se Elena decidiu também estudar fora, um pouco distante de mim, olha em minha direção dizendo que talvez não, esperando minha reação.

No caminho de casa, em companhia de seu pai, tento estimular a fazer um curso fora, mesmo contra a minha vontade interior, recebendo uma reação dura por parte da moça, que entendeu que eu queria ficar livre por um certo tempo, onde o paizão, consertou a situação e apoiou a minha atitude ao incentivar o futuro da mulher que um dia iria administrar os negócios do pai.

Passei à noite na casa da família, onde no dia seguinte daria treinamento a um funcionário da empresa que futuramente estaria me substituindo, pois cuidaria agora de meus próprios negócios.

Na última viagem à capital, fiz contato com os produtores que forneciam as sementes e dariam toda a assistência técnica. Com Elena visitamos a chácara escolhida por Lau, fizemos a coleta do solo para análise, onde fui verificar o Ph. Realizada a calação adequada e todo o manejo do solo, sempre acompanhado pela musa que não se intimidava em amassar lama de galocha, é claro, pois a frieira fazia carreiros. De onde ouvi os berros de Lau, que avisava a chegada de mudas, já esperada pelos plantadores de mutirão, coordenados pelo técnico da empresa paulistana. Tão logo, a primeira safra de mudas, entre elas: azaléia, chifrera, hibisco, rosas e outras flores.

Com a chegada da primavera, pude observar o ótimo negócio em que entrei, já com vários pedidos de orçamento o que me dava muito otimismo para investir na propriedade. Lau não era um funcionário comum, era uma espécie de “free lancer chefe”, pois não queria abandonar de vez sua bela chácara para cuidar da minha, mas sempre que podia estava dando assistência, apesar de sua idade um pouco avançada, fez também um curso de paisagismo, e se tornou um jardineiro vaidoso e detalhista. As madames da cidade que o digam, suas floreiras eram de fazer inveja.

Mamãe e meus irmãos tornaram-se funcionários da chácara, onde ajudavam a plantar e cuidar na minha ausência. Nunca ofereci tantos buquês de flores a uma dama como agora, minha sogra também usufruiu do negócio. Reformou todo seu jardim também, a mais bela rosa ela já tinha me dado. Dr. Mário se orgulhava do futuro genro, apesar de não ser chegado a flores, mas já tinha encomendado através de Lau uma cerca viva na chegada sua fazenda.

Após uma semana de muito trabalho na chácara, os bons tempos das unhas de barro e calo voltaram claro que agora, com muito mais conforto e tranqüilidade, mas estaria novamente bem próximo ao cantar dos calos, e gorjear dos pássaros a cada manhã e final de tarde.

Estava até acostumado com o sotaque do interior, sempre da fiúza dos conselhos do velho amigo matuto, da bonita casa sem modéstia de minha propriedade, ouço Lau chamar-me preocupado com a notícia que dizia o seguinte.

Encontrado corpo de andarilho


A polícia civil, através de informações, soube que havia encontrado um corpo no km 515, da Br-116, de imediato se dirigiram ao local. Ao chegarem, os policiais Guaraci e Rosângela fizeram um rápido levantamento, e constataram que o corpo achado era do sexo masculino, sem nenhum sinal de violência. Tratava-se de um andarilho natural da cidade de São José dos Espinhares. Por enquanto não se sabe ainda a causa da morte. A equipe de Dr. Antônio Carlos continua investigando para apurar a causa da morte.



Corremos para a delegacia da cidade onde o delegado local mantinha contato com os outros para nos manterem informados, pois com a distribuição dos cartazes, obtivemos várias informações, mas nunca conseguimos chegar ao paradeiro de papai.



O delegado não se encontrava no município causando mais desespero. Voltamos para a vila onde, antes de anoitecer recebemos a cordial visita do Dr. Delegado, que nos informou tratar-se de outro indigente, por nome de Nelson de Lima. Em parte sentimos alívio, sofremos então com a dor da família da vítima, pois quem sabe não estaria na mesma situação que a nossa, digo a minha.



Convidando para ficar para o jantar, o doutor aceitou. Minha mãe que passou uns dias na casa de pau-a-pique, ao lado de sua petição, preparou uma galinha caipira, temperada com cebolinha e majerona, com direito ao belo pirão de farinha de mandioca. Após degustar e receber os elogios do delegado, enquanto a chaleira preparava para receber o café, conversávamos na varanda onde a autoridade chama-nos de canto, Lau e eu, para uma conversa.



Talvez em segredo, como quisesse deixar minha mãe de fora, e nos informou que havia falado com papai, onde vivia na cidade do Rio de Janeiro, mas pediu total segredo, pois sentia muita vergonha da vida que levava e revelou que naquela manhã de 64, foi um basta, pois não agüentava mais a pressão da mulher, mas nunca tinha revelado o fato real de seu desnorteamento vital, que se deu na fazenda que trabalhava do alemão Alois.



Tudo começou, disse ele, quando numa manhã chegou no barracão da fazenda, ainda muito cedo, as cinco da manhã, quando ouviu um gemido contínuo que vinha da cachoeira. Ao aproximar-se do local, flagrou a patroa com o capataz, que todo mundo já desconfiava, mas ele foi o infeliz de campear e achar a sem-vergonhice de Dona Ester, que como uma cadela no cio, traía o patrão em viagem para o sul.



- “Ao perceber-me, o capataz, encostou-me no barracão e ditou as regras: - se falar algo, nós acusamos você de mexer com ela! Juro, não tive medo”, contou-me, mas sentiu-se ameaçado com as juras de morte.



- “Não tive outra saída, eu era de confiança do patrão, pois ele não confiava muito no capataz, mas sua mulher o protegia. Durante vários meses sofri pressão de ambos, onde me proibia de executar meu serviço, para eu pedir a conta ou ser despedido. A patroa insinuava boatos ao patrão, que eu ficava olhando para ela com más intenções, onde ela começa me tratar com indiferença, e passei a descarregar na bebida minha culpa de não poder contar o ocorrido, e por sofrer humilhações constantes de minha esposa, que me chamava de vagabundo”, conta.



- Sabe douto, comenta Lau, é difíce compreende o sê humano, uns pro qualquer coisa se abercedá, mas é coisa do caráter doto, prismarmente as pessoa iguar a nóis, que tivemos uma criação dura. Eu seu como cumpadi sofreu. Pensá que ele, tanto cunfiava nheu, e que nunca me conto esse caso, mais eu cismava do jeito dele. Mais ele vai vortá, num vai doto?



- Vai sim, respondeu.



Lau parecia reviver toda história que outrora percebera. Dr. Kamini, avisou que iria a busca do andarilho Andrelino, só que não poderia levar ninguém, pois se tratava de um trabalho demorado e de investigação, mas prometera trazê-lo de volta, custasse o que custasse. Despediu-se de nós, com sua viatura improvisada num Fusquinha, conhecido como “baratinha” seguiu em direção à cidade, agradecendo pelo jantar, onde nós nos recolhemos sem contar a ninguém.

Noites de autógrafo


Toda agitação ligada ao trabalho e aos problemas sentimentais não afastava os sentimentos inspirativos que me traziam refrigério para driblar a tensão, onde acabara de publicar a mais recente obra literária, intitulada “Depois do Exílio”.



Elena estava muito orgulhosa, muito mais que o autor. Minha mãe usava todos os artifícios para revelar que era minha mãe para os organizadores. O palco todo decorado anunciava minha obra literária. O orador fez todas as apresentações formais, desde patrocinadores ao público presente, convidando-me a fazer as primeiras apresentações.

Esnobia


Pra você é tão fácil dizer um não;
Quando tanto necessita de um sim;
E acha tão fácil me fazer chorar;
Quando nos teus braços tento sorrir;


Às vezes eu não entendo o teu jeito de esnobar;
Pois finge que não me quer, quando está a me desejar;
Nega-me teu braço, disfarçadamente esnoba um beijo.
Chegará minha vez, direi que não e então morrerá de desejo.


. A obra composta por mais de 60 trabalhos, já tinha sua edição toda vendida. A bela capa desenhada pelo cartunista Edybiry com prefácio do Professor Pérsio Oliver, e a apresentação da novelista Leila Micules e do Cartunista Maurício de Souza, garantiu mais qualidade para a nova literatura, patrocinado pela agremiação de uma multinacional, apadrinhado pelo Doutor Ricardo
Neves, Com exemplar em mãos, a fila espontânea de leitores se aglomerava entre autógrafos e coquetéis. Discretamente Elena dava-me assistência não querendo ser percebida, por ser discreta, onde recebeu antes da noite o primeiro exemplar. Seus pais com um largo sorriso orgulhoso aguardavam o momento de poder me abraçar e dar os parabéns. Encostado na parede, seu Silva, folheava pra cá e pra lá o livro, sem entender muito o procedimento, onde Elena entrou em ação encaminhando meu ex-patrão para receber o autógrafo, sem gozar do autor.



- O que as mulheres fazem com a gente Nhonhô? E, seriamente, deu-me um longo abraço parabenizando-me, ainda com a roupa cheirando a empório, fazendo-me recordar os bons tempos de dantes.



Lau, todo orgulhoso, apenas apreciava a capa, pois era analfabeto, mas conhecia meus versos na ponta da língua. Não faltaram na noite, nem aqueles que não admitiam meu sucesso como o Seo Cata, um ser racista, que tomou meu emprego através de uma perseguição voluntária para colocar um de seu chegado na vaga, com consentimento do Alcaide que comia na mão dele, devido os rabos presos e os benefícios que o mesmo concedia para o crescimento do ilícito patrimônio, sempre se escondendo atrás de filosóficas e sabias mensagens e até mesmo do sagrado, para se esquivar ou impressionar os menos favorecidos que viviam puxando a cadelinha e roendo ossos, enquanto eles desfrutavam do filé das limusines e da chave do cofre.



Após a noite de autógrafos, a caminhonete do Dr. Mário teve serventia, pois foi lotada para uma churrascaria próxima, onde ele e seu Silva bancaram toda a despesa para a família e os amigos mais chegados. Imaginei naquele instante a presença de meu velho querido, e veio-me o projeto de mais uma obra literária, desta vez, um romance. Abraçadinha e debruçada em meus ombros, Elena em silêncio contribuía para minha inspiração.