Na pele do andarilho


1967, abril, gravetos misturados com pedaços de borracha de pneu e papelão úmidos, ajudava a esquentar a noite, abanada com o vento enviado pelos caminhões que, em alta velocidade cruzavam a BR-2. As rachaduras em meus pés ardiam na sandália improvisada, a saudade ardia muito mais em meu peito, ensopado pela saudade e afeição.


Na roda de amigos, uns vítimas do destino, outros de suas próprias atitudes, entre beberrões, traídos e humilhados, lá estava eu, mau compreendido por mim mesmo. O mais bem sucedido dos mendigos era o pai velho, que abandonado pela família, gozava de uma pequena aposentadoria, onde na vida remota foi torneiro mecânico, sempre exibindo o toco de dedo, contava as notas que às vezes comemorava em um litrinho, mas sempre acabava em discussão.


Ciro, que nunca quis falar de sua vida passada, simpatizava com a minha pessoa, na verdade nós não éramos andarilhos de estrada, talvez a idade nos fez acomodar na cidade por mais tempo, apesar de termos muita vontade de abandonar o Vale do Ribeira e partir para o Litoral. Apesar de Elias ter vindo de Praia Grande, onde por infelicidade, saiu para comprar remédio controlado para seu uso, e por sua aparência não ajudar muito, uma das pessoas que recebia indigente o capturou vindo parar em Cajati.


Voltando a falar de Ciro, numa manhã de muito sol, convidou-me para ir até as proximidades do restaurante da Corina, onde não podíamos chegar perto, para não espantar a freguesia. Cada um com uma latinha, a minha era de manteiga “Aviação”, a de Ciro não me lembro mais, só recordo que estava bem porca. Sentamos na calçada do tal Dr. Wesler e ficamos a conversar enquanto a Tia Corina não percebia a nossa presença pois ao avistar-nos, logo dava aquele costumeiro aceno para que fôssemos buscar um pouco de comida, da mesma que servia aos fregueses. Foi ali que conhecemos Arlindo, um engenheiro de elétrica, que ficou impressionado com nossa história , mas logo saiu deixando um bom trocado, e alguns folhetos na Bíblia, falando do caminho da verdade e da vida. Bem que a gente conhecia, mas vivíamos no atalho da mentira e nos caminho do fim.


- Ciro! Chamei.


- Hum! Resmungou.


- Têm mulher, filhos? Nada respondeu, e após um vago silêncio, ao olhar um caminhão baú, apontou orgulhoso: Tá vendo? É do meu filho, uma bela fábrica, pena que sua mãe estragou tudo, trocou nossa felicidade com outro, achei ela com outro, com outro viu?...Começou chutar tudo que via pela frente, lançou sua marmita no chão, xingando. Tentei segurar, mas saiu correndo em direção à ponte que o governo Ademar de Barros construía recentemente, aparecendo sós à noite, mas já bem alegre com a cachaça que digeriu com os trocados deixados por Arlindo.


Numa noite desta, no beiral da Oficina do Coqueiro, ainda incomodado com o frio, conversávamos animados, onde o assunto, quase nunca era pessoal, pois o nosso silêncio e mistério eram mais com os estranhos. Pude observar Silvério, já com seus 68 anos puxar de seu saco de linhagem, seu pequeno cobertor misturado com latas, litros e um pacote de papel que parecia guardar com orgulho. Foi quando tentou guardar, e olhou para mim perguntando se aquela porcaria tinha alguma validade, ao abrir pude ler em letras garrafais “Diploma de conclusão do curso de engenharia pela UFPR”. A princípio, parecia uma brincadeira, mas ao conversar intimamente, Silvério chamou a atenção de todos falando do motivo que o levou à vida de andarilho.


- Olha! Talvez faltasse força da minha parte, mas batalhei a vida toda, me formei, venci e num dia na empresa fui acusado de responsável pelo desabamento de uma ponte , destruindo famílias, causando vergonha e prejuízo para minha vida profissional. Eu sempre soube do responsável pelo boicote e tragédia, mas meu estado emocional e minha moral já não ajudavam muito. Percebia a rejeição até de meus amigos mais íntimos, apesar de que só agora veio à tona. Mas já estou velho demais para recomeçar. Apossa-se do litro e canta uma canção gauchesca. Lerdo, parecia um repórter disfarçado, o que eu ainda duvido que ele não fosse, pois todos os nossos movimentos eram anotados. Ele que apareceu de repente, e de repente desapareceu entre nós. Mas não faltavam aqueles que pareciam ter nascido andarilhos ou vagabundos de berço.

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