Rotina no Armazém Secos e Molhados Do Silva


Cinco anos se passaram após aquela visita à casa da madrinha. Lembro-me que após isto, estive lá apenas duas ou três vezes. Nhô Lau – meu velho amigo – anda agora capengando devido a uma enfermidade que o acometeu. Mas não perdeu o pique, o sorriso velho e maroto do contador de causos, ainda era para mim o retrato de meu pai. Talvez, meu maior prazer fosse estar próximo a ele para ouvi-lo ainda que me chamasse de “Sabuguinho de Milho”. Imaginemos eu, com quinze anos, sendo para ele como um filho, pois não conseguiu realizar o sonho de ser pai.

                   Estava cursando o segundo normal, o computador ainda era um sonho, navegar na internet não era coisa de matuto ou caipira, de ninguém ainda. Mas a felicidade de trepar nas árvores e tomar banho de riacho era mais divertida que qualquer bem de consumo, sem desprezar as responsabilidades diárias. Indicado por Nhô Lau, onde passei a chamá-lo de Sêo Lau, mesmo contra a sua vontade, talvez por vergonha dos colegas que iam a sua chácara, em minha Campânia, para se divertir ali pelos arredores.

                   Fui chamado para trabalhar em uma mercearia na vila, o “Silva Secos e Molhados e Armarinhos em Geral”, que na verdade, a graça de batismo , era Silvério da Tidulina. Como o nome já dizia, havia de tudo e não faltava os “escora balcão”, aqueles que após os coivaras ou mutirão, iam tomar a velha cachaça. Lembro-me que a mais pedida era a “Tatuzinho”, o cheiro da pinga misturado com o fumo de corda, o suspiro e o pé de moleque da confiança, o BHC, a fazenda nova e o alimento, viravam uma salada mista, onde muitos entravam só para sentir o exalar do perfume.

                   Na rodinha, não faltava os contadores de causos e aqueles que desabafavam a reação da bebida na cara dos companheiros, não faltava também à recordação do velho assunto: o paradeiro de meu pai. Quando alguém mencionava alguma coisa, outros murmuravam algo, como se não fosse para que eu percebesse.

                   Após a agitação do encontro e desencontro, onde a fantasia do interior e a realidade da vida, na somatória geral me deram respaldo de muitas realizações e felicidades, num dia chuvoso, o empório vazio, dava a impressão de que a despensa de todos estava cheia de tudo. Folheando o jornal “A baixada do Ribeira, da Jornalista” S.Correia.

Aguém coloca a mão sobre a página. Quando levanto a cabeça, uma moça de seus quatorze para quinze anos, olhava-me. Os pingos de seus cabelos chegavam a enrugar a folha de jornal.

-                     Desculpe! – disse-me. – Ocê tem banha? Num tom de gracejo, respondi:

-                     Não muito, mais dá pro gasto. Ela caiu na risada e fez um silêncio, acabei ficando sem graça e continuei: - Tem sim! Fui buscar o pacote do produto e, ao voltar para ela, percebi que continuava me olhando. Eu não estava acostumado com aquela cena, mais adorei. As gotas de chuva ainda escorriam pelos lábios carnudos e, seus dentes, que pareciam polidos com carvão, sorriam vagamente a cada gesto que eu fazia.

-                     Você quê mais alguma coisa? Perguntei.

-                     Quero sim! – respondeu me entregando uma listinha com quase quinze itens, que uma donzela não conseguiria carregar sozinha. Momento este que, seu Severino Silva, dono da mercearia, adentrou no estabelecimento e me pediu que atendesse bem a moça. No mesmo instante o patrão pergunta:

-                     Como vai o seu pai Maria Elena? O doutor já voltou de

-                      Viagem? Avisa pra ele que acabou de chegar a carne de sol, do jeito que ele gosta.

-                     Tá bom – respondeu a moça vagamente.

Continuou seu Silva: - Sabuguinho ajude a moça. Leve as compras para ela na bicicleta.

Desta vez não gostei muito do apelido, já estava bem grande para ser chamado de “Nhonhô ou Sabuguinho de Milho”. Mas seu Silva havia feito de propósito.

         Arrumei a sacola no bagageiro dianteiro da bicicleta. Maria Elena foi me guiando, pois não sabia direito o caminho de sua residência. Em certa altura da viagem, ela se vira para mim se equilibrando na sua monareta enfeitada, pergunta o meu verdadeiro nome, ainda ironizando o “Sabuguinho de Milho”. Nesse momento, diminuímos, e fui obrigado a contar a minha história. Fato este que despertou curiosidade na bonita e fina jovem.

Ao chegarmos no casarão, coloquei a bicicleta no suporte e carreguei as sacolas até a porta de sua residência. A mãe de Elena veio ao nosso encontro, perguntando se não estava faltando nada, pois na verdade, ela havia  esquecido de marcar um engradado de guaraná para servir aos convidados do dia seguinte, que iriam homenagear o Doutor aniversariante. O guaraná tinha nesta época na tampa, uma rolha de cortiça. Prontamente me dispus a buscar a caixa para ela, quando Maria Elena me interrompeu para me oferecer um copo de limonada. Mesmo sedento e suado pelo mormaço, após a chuva, tentei enjeitar.

Insistentemente, me encaminhou até a cozinha onde me fez sentar e provar do cuscuz e tomar a limonada feita pela sinhá Domingas. Ao retornar, sua mãe me agradeceu e recomendou que trouxesse a bebida no outro dia, mesmo com minha insistência de retornar logo mais. Ainda me chamou no portão, convidando-me para a cerimônia, constrangendo-me mais ainda. Mesmo assim, aceitei o convite. Querendo, mais cismado, em olhar para trás, parei a bicicleta para verificar o pneu traseiro e então pude perceber que a moça, na sacada, olhava talvez em minha direção.

O patrão brincou com a demora, entendendo o espírito jovem do empregado e a renda da cliente. Anotou a encomenda e entregou-me um presente, pedindo que o levasse ao doutor, visto que não gostava muito de ir a festas.

O final de semana era muito agitado no comércio, onde os camaradas aproveitavam a folga pra fazer compras e tomar os porres, mas mesmo assim, seu Silva insistiu para que eu fosse levar a bebida e também ficasse para a festa. Caso ele precisasse de algo, eu estaria à disposição. Até que gostei da idéia, e fui cumprir o meu papel de funcionário e convidado. Quis ser prestativo e até que tentei fazer algo, mas a mãe de Elena, Dona Maria, me proibiu de qualquer gesto que insinuasse trabalho, parecia até que, fazer companhia para sua caçula, já era um grande serviço.

Os convidados foram chegando, uns de Galaxie, outros de DKV, Gordine, Jeep, Aero Willis, corcel GT, cavalos, charretes, enfim, da elite à humildade. Havia de tudo e também muita fartura. Nunca tinha visto uma festa daquele porte. Confesso que fiquei encantado, e, encantado duas vezes.

Enquanto os convidados se serviam, Elena percebendo a minha timidez preparou um prato recheado e trouxe-me. Num ato de carinho, ofereceu-me o primeiro  na boca. Confesso que fui tolo por não ter aceitado, fazendo-a ficar sem graça, mas consegui consertar a tempo, oferecendo-lhe um garfo de salada de maionese. Prontamente ela aceitou, olhando no fundo de meus olhos, creio que seu pai percebeu. Aproximou-se, também com ar de ingênuo, e perguntou-me se eu estava me divertindo. Na seqüência, pediu que eu lhe procurasse no dia seguinte. Quis dar ênfase ao assunto, mas ele, discretamente, levou para outro rumo, deixando um calafrio e o suspense na manhã seguinte. Elena, preocupada com o meu semblante, segurou em minha mão suada e fria, brincou:

-         É  Sab..., Não. Como é mesmo seu nome?

-                     Eu acho que o meu pai vai chamá-lo para trabalhar com ele. Você vai né? Apenas sorri e ela continuou segurando em minhas mãos, agora normal, sentindo seu calor, quis me despedir da moça. Simpaticamente ela me impedia, no momento em que o telefone toca e ela é convocada por um dos empregados para atender. Por mais de meia hora ficou a conversar. Meio chateada e sem graça, retorna ao meu encontro, calada, avisando-me que iria se recolher, dando-me a oportunidade do último sorriso e os olhos profundos dizendo algo sem palavras.


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