Começo de uma nova história


Após uma merecida folga de domingo, na segunda de manhã, entre o cantar do galo e o gorjear dos pássaros, segui para mais um dia de rotina. Nas casas onde passava, o volume dos “Zé Betio”,da Enezita, do Ranchinho, oferecia água para acordar os mais sonolentos. O barulho da colher temperando o café, e o cheiro dos bolinhos, registrava os bons tempos de uma década que tecnologia ainda não a excluía.
Ao chegar ao empório, seu Silva parecia querer me contar algo importante. Aproximou-se de mim, colocou as mãos sobre os meus ombros e disse:
- Olha! Meu bom rapaz, o que eu tinha que fazer por mecê, eu já fiz, mas algo melhor tenho para você. Sem entender nada, dei toda atenção e ele continuou. – É uma perda grande para mim, pois mecê tem me ajudado muito. Puxou a gaveta da registradora e resgatou umas notas e entregou-me, pegou mais um envelope grande com um calhamaço de papel dentro e disse-me: - Olha, em consideração ao seu pai e, ao meu grande amigo Nhô Lau, que me apresentou você, tá aqui um presente e espero que ajude.
- Não posso pegar seu Silva, disse preocupado, e ele, respondeu-me que ainda estava devendo para mim.
Peguei minhas coisas, deixei lá apenas a minha bicama (aquela que arma e desarma) e fui para o sítio. Minha mãe já embravecida ralhou de longe.
- Moleque, esqueceu que tem mãe e que tem casa? A gente cria filho e depois ele desencasqueta a djente. Mas ao me aproximar, um abraço firme e carinhoso parecia esquecer toda braveza.
- Mãe!, disse, preciso voltar ainda hoje para cidade, Doutor Mário quer falar comigo.
E, nem deu tempo de contar para minha mãe, que fui enchugado do empório, tomei aquele cafezinho gostoso com pamonha e berequeca,. Mamãe encheu o ferro de brasa e adiantou minha camisa “Volta ao mundo”, calcei minha galocha, enquanto resmungava: - É, Nhô Lau vive perguntando por você, ele disse que você abandonou, seus irmãos vão vir pra cá sábado, espero que você estedje aqui. E essa sacolada de mercadoria é nossa?
- É sim mamãe, é sim, beijo mãe, Deus a abençoe, tô indo.
Numa bela fachada de estilo francês, com um letreiro de ferro fundido, o nome do advogado Dr. Mário Pierre. A sala de recepção estava lotada de gente fina, homens de bota de couro, galochas, e de borracha. Num cantinho da sala, lia um almanaque enquanto aguardava a atendente, uma senhora de idade, vezes por vezes, olhava por cima dos óculos meio vidro, como querendo me perguntar algo, até que me chamou.
- Você é o André?
- Sou sim, - respondi.
- Ora, se tivesse me avisado, não teria esperado tanto tempo. Tá vendo aquela sala ali no outro lado? Então vá até lá, que tem alguém te esperando. Rapidamente, fugindo dos olhos curiosos da matuta que esticava os ouvidos para ouvir e saber da conversa segui para lá.
Um luxo, um perfume que dava até pena de entrar, ao chegar à sala, já ansiosa e apreensiva, a moça da fazenda, a filha do patrão, a garota do cabelo molhado de chuva, que pedalou a monareta, estava novamente na minha frente. Só que, agora, como uma deusa irreconhecível. Com a mesma simpatia, cumprimentou-me segurando em minhas mãos. Olhando em meus olhos, pediu que eu entrasse em outra sala ainda mais chique e perfumada, atendeu mais alguém e logo entrou.
- Meu pai já falou contigo André?
- Não, respondi.
- Só para te adiantar, ele gostou muito de você, e espero que aceite a proposta de vir ajudar a cuidar de nossos negócios, pois ele quer que eu vá estudar no exterior. Aquilo gelou novamente a minha barriga, pois um sentimento além de amizade tinha brotado e, interesses pessoais não passavam pela minha cabeça, visto que eu vinha de uma família simples e ela de uma educação exemplar.
- Exterior? – perguntei.
- Isso mesmo – respondeu -, mas só daqui uns dois anos, assim que terminar o colegial.
Aquilo me aliviou e foi ali que começou um momento íntimo de carinho e ternura, onde ela quis saber de mim, qual seria o meu sentimento em relação a ela, visto que eu jamais havia insinuado qualquer sentimento que viesse confundir a nossa sincera amizade.
Depois de uma longa conversa com o Dr. Mário e seu secretário de gabinete, foram providenciadas as papeletas. Elena comemorava comigo a contratação do mais novo funcionário da casa, que juntos apesar de pouca idade, iríamos cuidar dos negócios imobiliários, sempre assessorados pelo Capataz de plantão.
Dr. Mário ofereceu-me uma carona. Antes que eu aceitasse ou agradecesse, Elena informa ao pai que gostaria de me convidar para irmos a uma chiboca a duas quadras do escritório. A recomendação foi apenas de que não chegássemos muito tarde em casa, perguntou se ela tinha algum dinheiro, bateu em meu ombro e seguiu caminho em seu Cincas azul e branco.
Apesar de não ter idade suficiente para dirigir, adentrou em seu Fusquinha e, num ar debochado, estendeu sua mão como gesto de cortesia, convidando-me a tomar o banco da frente. Meio arisco entrei. Pediu-me desculpas pelo cheiro de mofo, do tempo guardado e sem uso do carro. Em pulinhos, o automóvel da geração, entra na rua esburacada. Preocupado com a direção, seguro firme na porta e tento disfarçar, pois cada gesto de Elena, é uma fantasia onde começo a viver uma outra realidade.
Ao chegarmos a frente ao café, discretamente puxa o freio de mão e esbarra suas delicadas e macias mãos nas minhas apostas. Percebi que foi por gosto, proposital na linguagem atual. Correspondi com um leve movimento. Ela olha em meus olhos e se aproxima. Num movimento inibido e anestésico, sem insinuar uma palavra, seus macios lábios roçam aos meus. Tomo-a em um abraço destro pela minha posição, balbucia o meu nome e oferece-me mais um suave e doce beijo, desta vez mais profundo e prolongado. Ela abre primeiramente a porta e em seguida vou ao seu encontro e o acanhamento foi para as cucuias. Abracei-a e tomei a iniciativa: rocei as minhas mãos em seus cabelos, aquele mesmo que quis um dia enxugar. Ela declarou todo seu amor por mim, conversamos por várias horas roubando o tempo até mesmo das maria mole e dos suspiros e do café.
Ao percebemos a hora, retornamos à sua residência. Sua mãe preocupada, já havia mandado o empregado ao nosso encontro, e, no desencontro, chegamos antes dele. Preocupada, mas sem perder a simpatia, força-me a entrar e participar do jantar. Desejoso em prolongar a noite, sem fazer cerimônia, senta-me ao seu lado à mesa, rodeado por olhares marotos e insinuantes. Ficamos conversando por horas duas na varanda antes de nos recolher para repousar, cada um em sua cama, é óbvio! Num quarto de hóspede dos caseiros, passei a noite a sonhar acordado. As estrelas, o cheiro das flores de laranjeiras, tornaram minha noite ainda mais bonita e inesquecível. Abro a tramela e ainda posso observar a lamparina acesa do quarto da musa em trajes apagando-a no momento em que abro a janela num sinal de boa noite ou de insinuação.
Nem bem o galo cantou o empregado na janela: - André!, Senhor André, é pra vós mecê se arruma que o patrão qué o senhor na cidade com ele. Mais que depressa, pulo da cama e me arrumo. O café já está na mesa, só o cenário do fogão de lenha ao fundo e a decoração da mesona cheia de pães caseiros e os derivados do leite, já alimentam. Rapidamente, Dr. Mário toma apenas uma xícara de café, com minha barriga roncando de fome, procuro seguir o cerimonial e levanto da mesa decepcionando meu pobre estômago.
No caminho da cidade, num luxuoso automóvel, após um breve silêncio de ambos, uma voz de esquerda indaga sobre minhas condições, pois já havia treinado o ofício em todas suas fases. Apesar de não ser bem aquilo que queria, fui sincero e enfático onde fui compreendido. Parecia que a sua preocupação não era com o meu trabalho, e sim com minha vida pessoal.
- André – questiona-me outra vez – Como vai o seu relacionamento com a “Tuti”?
- “Tuti”?. Retruco.
- Elena! É um nome carinhoso – disse-me.
Fiquei confuso, e falei das qualidades das quais ele já sabia, mas as curiosidades seguintes foram em tons mais íntimos. Não me constrangeu pelo fato de ele ter colocado sua filha como interessada pela minha pessoa, deixou-me mais tranqüilo. Sua técnica advocacional arrancou de mim tudo que queria saber em poucos segundos, sem deixar de me falar e de me prevenir do romance que Elena teve até pouco tempo, acabado com a mudança de Felipe para estudar no exterior, um menino, filho de um outro fazendeiro local.
Elena nunca tinha me falado em outra pessoa, talvez nunca tivéssemos oportunidade de falar sobre esse assunto mais intimamente. Mas pude deduzir algo relacionado com a revelação de seu pai, pois o primeiro dia que estive na fazenda, ela atendeu a um telefonema e percebi seu semblante diferente. Quem sabe, se naquele fim do romance, começou o namoro...
Após um mês agitado de trabalho no escritório imobiliário, fui passar um fim de semana na casa de minha mãe. Quis convidar Elena, mas ela havia deixado um recado com sua mãe, de que iria para a casa de uma amiga, num chá de bebê. Tomei a condução, na época chamava “Carro toldo”.Os matutos, chamavam “Carro Tordo”, lembro-me, era um nacional caixa dura.
Nem bem desci do carro, minha mãe, que conversava com a vizinha, saltou toda orgulhosa abraçando-me e apresentando-me:- Esse é meu futuro Doutor, comadre. Trabalha na cidade grande, mecê vê como esticô o danado? Num sei não, mas parece que tá té namorando. Aquele papo de comadre, já não fazia parte do meu currículo vocabulário, mas não poderia perder as raízes. Após abaixar a poeira dos paparicos, fui logo perguntando pelo meu querido Nhô Lau. Contou que o mesmo já havia me procurado várias vezes nesta semana. Coitado! Tomei um rápido café com ela e a comadre, nem tão rápido como o do patrão e fomos para a casa dele. Qual surpresa foi a minha, quando o vi. Lau caminhava normalmente, com um baita sorriso maroto, o velho amigo, discretamente deixou uma lágrima cair.
- “Minino”! – disse-me ele -, ocê carece umas parmadas, onde já se viu judiá de seu véio Lau? Totó, o seu vira-lata de estimação borrou toda minha calça farveste. Sai daí daninho! – ralhou, embrabecido, Porte Nhonhô, porte comadre, entre Nhá Rita, e dá-lhe café. Ô povinho pra gostar de café!
Sempre que nos encontrávamos, um silêncio pairava. Nhô Lau queria contar-me tudo que ocorreu durante a minha ausência. A reforma da charrete, as ninhadas, as colheitas, enfim, queria ser retribuído com as novidades. Mais um vez, minha mãe ficaria sozinha, pois Lau implorou para que eu posasse em sua casa e mamãe voltou com a comadre.

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